E então eu cheguei à Catemu,
pequeno povoadinho do Chile circundado por montanhas gigantes. Eu tinha avisado
na fazenda que eu ia chegar na sexta-feira, mas para aproveitar mais cheguei na
quinta. Eu não sabia se eu podia chegar antes e na dúvida até pensei em dormir
no povoadinho, ele estava tão tranqüilo que deu mesmo vontade. Mas decidi pegar
o táxi que levava até a fazenda e se não desse certo eu voltava.
Cheguei e logo já matei minha
dúvida. No cartaz que eu vi não tinha nada falando que a fazenda era do pessoal
Hare Krishna, mas pelos vestígios eu imaginei e essa foi uma das influências
que me levou a ir para lá. Cheguei e fui logo recebida por um devoto com seus
trajes religiosos de monge, roupa de pano laranja, blusa e algo em forma de
saia, pintura no rosto e cabeça raspada com rabinho e colar de sementes. Eu
adoro essa composição deles, a simplicidade da roupa me traz uma boa harmonia
visual. Apresentei-me, eles apresentaram um pouco do programa e me levaram para
a minha cabana.
A cabana é um quartinho de
pau-a-pique e sapé muito bonitinho. Também fui apresentada para minha
única companheira de quarto. Depois de tantos hostels compartidos com um montão
de gente, embora eu até goste, quando eu vi aquela cabaninha só para nós duas
com um banheiro de chuveiro de água quente para tomar banho... hum... eu
respirei fundo e senti o ar da serenidade começando a chegar em mim!
No primeiro dia fui logo fazer a
aula de yoga. Quase morri de tanta dor em todos os lados do corpo. Quanto mais
doía mais eu me certificava que tenho que fazer yoga quando voltar para casa. É
impressionante como sou enferrujada e não tenho controle sobre meu corpo.
Preciso urgentemente tratar isso para colaborar com a vida saudável!
Depois do yoga fomos jantar.
Nossa... quanta comida! Eu estava certa que na fazenda eu ia regular a minha
alimentação, mas a realidade foi totalmente diferente. Está certo que eu comi
muita coisa boa e rica em tudo que precisa, mas o problema é que lá a forma de
alimentação é muito maluca. Eles servem café da manhã por volta das nove,
almoço por volta das três e janta às oito. Não existem meias refeições nos
intervalos e para não ter fome essas três principais são mega bem servidas.
Pela primeira vez na vida eu vi e vivi a idéia de comer comida, arroz, sopa e
outros no café da manhã junto com pão e chá. E não dava para fugir disso para
ter forças para trabalhar e agüentar esperar o almoço. Mas que as comidas eram
deliciosas e que eu adorava o horário das refeições isso é certo!
Trabalhando...
Fiquei na fazenda de quinta à
noite até segunda de manhã. Por isso acabei trabalhando pouquinho. A idéia do
trabalho voluntário, nesse caso, era organizado da forma que cada voluntário
pagava cerca de vinte reais por dia, com direito às refeições e aulas de yoga e
oficinas e como o valor era muito em conta, cada um contribuía com quatro horas
de trabalho diário com atividades de fazendas. Na verdade quem vai até lá tem a
ideia do trabalho como uma atividade também de lazer, boa para a mente e para
novos conhecimentos.
No primeiro dia eu trabalhei com
mais duas voluntárias quebrando as cascas de nozes e separando as partes inteiras e quebradas para a venda. Três mulheres juntas fazendo esse trabalho
resultou em muita tagarelagem. No segundo dia trabalhei com a horta, cortando
as folhas secas e amarrando os pezinhos de tomate. Esse foi o melhor dia! Eu trabalhei
descalça e sem luvas para sentir as energias da terra através do meu trabalho.
No terceiro dia ajudei a varrer as folhas secas da grama. Esse dia foi pesado
porque levantava uma poeira de doer nariz e os braços também doíam. Mas fui eu
que escolhi a atividade, eu gosto tanto das folhas secas das árvores típicas
dos lados de lá, que eu queria trabalhar perto delas de alguma forma!
Todo o trabalho era feito em
conjunto. Somávamos quatro voluntários “de fora”. Eu, uma chilena que era a
minha companheira de quarto e passou cerca de dez dias na fazenda e um casal
de???? Brasileiros! De onde???? Minas Gerais! Foi muita coincidência! Jamais eu
ia esperar encontrar com mineiros em uma fazenda no meio do nado do Chile. Eles
estavam lá por um mês e eram super bacanas. Eles são do tipo de casal que gosta
de agregar amigos ao relacionamento, então estivemos muito juntos. Nessa
história só o meu espanhol que começou a ir por água abaixo. Não é nada
positivo para o aprendizado de línguas ficar exercitando a sua língua materna!
Mas foi muito bom ter a companhia deles.
Além de nós quatro “de fora”
tinham mais dois amigos dos devotos que também faziam as mesmas atividades que
a gente, mas que tinham uma inserção maior na busca pelo conhecimento das
teorias da religião. Na verdade a fazenda é de um grupo de religiosos, mas eles
deixam mesmo o programa bem a parte disso. Eu acho isso interessante, que é uma
forma deles demonstrarem que o programa não tem o objetivo de ficar
influenciando ou “forçando” ninguém a nada, era apenas um trabalho voluntário
na fazenda sem nenhum outro ideal. Mas diretamente para mim não foi muito boa
essa separação porque eu queria conhecer um pouco mais da filosofia religiosa.
No entanto, como eles não divulgavam muito os horários de reunião deles, eu
acabei ficando totalmente desleixada desta intenção e me dediquei somente a
desfrutar da tranqüilidade do lugar, da minha solidão (de uma maneira muito
positiva) e dos momentos com os amigos de lá.
Medinho..
A solidão, embora positiva, só
era dura nos momentos de escuridão. Para usar o banheiro de fora, como eu
escolhi, eu tive que me propor a desafiar meu medo de escuro, um dos maiores
medos que tenho, para sair caminhando na noite estrelada até chegar lá. Para
mim isso era um desafio e tanto! Na minha última noite a minha companheira de
quarto tinha ido embora. Eu tinha pensado que ia adorar isso, porque a ideia de
um quarto só meu a essa altura da viagem me caia muito bem. Mas nesse dia...
confesso que dormi com a luz acessa, kk. Eu tinha sido a última a sair do salão
do jantar porque estava usando o computador. Quando tive que apagar a luz do
salão e vi toda a fazenda apagada e adormecida corri pro meu quatro e fiquei
com a luz acessa a noite toda, principalmente porque não tinha chave na porta.
Resultado foi que eu acordei às quatro da manhã e aproveitei para, no último
dia, me reunir com os devotos no templo enquanto eles faziam as orações da
madrugada que começa as cinco e vai até as oito. Eu não dei conta de assistir
tudo, até porque fui embora da fazenda às 07:30, mas pelo meu interesse e pelo
medo que eu estava de ficar no quarto eu preferi ir para lá rezar. Rs.
Cena de filme...
No meu tempo livre na fazenda, avaliando
minhas ações dos últimos dois meses e o meu verdadeiro desejo de conquistar
essa realização, eu decidi que ali, sem esperar mais nenhum dia, eu tinha que
aprender a andar de bicicleta, kkk. Contei isso para o Leandro, voluntário e
estudioso da religião, e ele se ofereceu para ajudar. Inicialmente eu falei com
ele que queria tentar sozinha porque sabia que com ele, ou com qualquer pessoa,
eu ficaria com vergonha. Assim, peguei uma bicicleta da fazenda e fui tentar.
Nossa, não conseguia sair do lugar de jeito nenhum e tive que falar para o
Leandro que eu mudei de ideia em relação a sua ajuda.
Depois de trabalhar no domingo o
Leandro se ofereceu a me acompanhar e fomos para a rua de asfalto para a nossa
missão! Gente... que bonitinho que foi e que delícia a sensação de conseguir um
pouquinho! O que foi bonitinho é porque o meu dia com ele foi igualzinho filme
de romance adolescente. rs A cena foi a seguinte: Passamos por uma
ponte do rio que cai, de madeira e que balançava até, sobre um lindo rio em um
dia muito ensolarado. Chegamos ao asfalto e lá fomos nós... Ele começava
segurando a bicicleta com uma mão entre um guidom e a outra entre os dois. Eu
ia pedalando, pegando velocidade e ele... tadinho... rsrs, ia correndo junto
comigo, mas correndo mesmo, porque a bicicleta não tinha freio e eu estava
descalça e não tinha como parar com o pé. É claro que se eu soubesse disso
tinha colocado um tênis, mas não sabia e assim íamos, eu pedalando e ele
segurando o guidom e correndo atrás de mim. Ele ia dizendo um monte de palavras
de incentivo e eu, que na verdade não senti vergonha nenhuma, ia me enchendo de
entusiasmo e cada vez conseguindo um pouquinho mais e ele cada vez mais
comemorando “Isso Kelly!!”. Tava mesmo uma cena um tanto quanto adolescente a
marmanja aqui de vinte quatro anos sendo apoiada para aprender a andar de
bicicleta. Por fim eu até consegui um trajetinho bom, mas não consegui arrancar
sozinha. Só parei de tentar para não matar ele de cansaço, coitado! Para
descansar sentamos na ponte de asfalto e ficamos vendo o rio, as árvores e
conversando coisas bonitas sobre as sensações de estar no meio da natureza. No
fim do dia Leandro me surpreendeu me entregando meu primeiro e único poema em
espanhol, feito para mim. Eu fiquei super desconsertada, sem jeito, com
vergonha e, vermelha,... agradeci! Depois fiz uma cartinha pra ele agradecendo
pelo dia e dizendo que ele será sempre lembrado. O poeminha dizia o seguinte:
“Lindo es compartir
Bello es saber,
Que hay una persona
Que quiere aprender
Cosas divertidas
Cosas con valor
Temas interesantes
Que dan placer al corazón
Es un agrado conocerte
Es un encanto saber de vos
Es disfrutable saber que existe
Una gran alma en tu interior
Con mucho cariño Leandro”
Bonita recordação!!
Momento de decisões...
E meus momentos de solidão na
fazenda também foram excelentes. Levaram-me a fazer uma análise dos últimos
dias, de qual era o estágio que eu estava chegando, do que eu gostava e o que
eu não gostava e assim fui começando a pensar na idéia de voltar para casa. Foi
exatamente o momento de relaxamento que começou a me fazer sentir cansada. Fui
pensando nos meus próximos trajetos, com duas super cidades grandes, capital do
Chile e da Argentina e fui dando uma desanimada. A fazenda me fazia querer
muito mais parar do que seguir. A idéia de ficar entre prédios, carros, barulho
começou a soar estranho para mim quando eu estava ali, entre as árvores de maça
verde, de nozes, entre os pavões, os matos e as folhas secas. Além disso,
olhava para o tamanho da minha super pansa que se formava e comecei a ficar
enjoada com a idéia de ficar tacando um tanto de massa gorda para dentro do meu
corpo por, muitas vezes, ser a única opção de comida (não na fazenda). Eu
comecei a sonhar e idealizar uns dias comuns com uma dieta saudável,
balanceada. Meu corpo pedia isso! Nesse contexto eu fui percebendo o quanto
comecei a desacelerar do meu ritmo vulcão que guardo escondido no meu interior.
Não sabia se essa acalmada seria só ali na fazenda, mas eu estava feliz de
sentir a paz interior. Os dias na fazenda me deram sensações contraditórias, a de
que aquilo ali me fazia muito bem e era bom estar ali e ao mesmo tempo a de que
eu tinha que começar a me mover e que eu não conseguiria ficar por muito tempo parada
na fazenda. Muito contraditório, mas é isso que eu senti e fiz. Parecia que eu
recebia um chamado para voltar para casa!
Além disso, por muita
coincidência minhas coisas todas estavam chegando ao fim, coisas bobas, mas
parecia uma conspiração para minha volta. Estava muito no restinho a minha
pasta de dente, o meu shampoo, meu creme de cabelo, meu creme de corpo, meu
remédio que eu tomo todos os dias e não acho o mesmo fora do Brasil e meu
caderninho de anotações que terminava apenas com uma folha. Tudo isso eu podia
comprar mais, mas pura coincidência tudo aconteceu junto! Analisando as coisas
eu fui percebendo que eu tive maravilhosos setenta dias, mas que estava
entrando para uma fase que dois acontecimentos no Brasil me fariam mais felizes
que o restante da viagem.
Sábado dia vinte seria a festinha
de aniversário da minha irmã. Nós duas vivemos separadas e por isso nos falta
um pouco de contato e intimidade. Mas nesses dias de viagem escutei que ela
estava “morrendo de saudade” de mim. Escutar isso fez meu coração tremer! Que
lindeza, ela morre de vergonha de conversar comigo e falar uma frase dessa foi
mesmo demais. Resultado é que eu fiquei morrendo foi de vontade de chegar ao
aniversário dela de surpresa e dar-lhe um imenso beijão de parabéns! Outra
situação era que em data bem próxima a minha madrinha, amiga, companheira,
parceira iria passar por um momento um pouquinho complicado e tudo que eu mais
queria era estar ao lado dela. Estar junto com ela me faria mesmo muito mais
feliz que estar junto de qualquer linda paisagem ou principalmente de qualquer
cidade cinza. E por tudo isso eu decidi voltar!! Decidi voltar leve, feliz e
satisfeita com a minha expedição.
Eu tinha pensado na ideia de
ficar na fazenda por um mês, mas depois dessas sensações eu vi que tinha que
seguir e assim fiz! Eu não estava muito no clima da capital, mas Santiago
estava muito perto e por curiosidade e por ali ser o ponto de partida para
qualquer outro lugar eu fui para lá na segunda-feira pela manhã.
Partindo para a despedida...
Ir para Santiago foi uma
maratona. Como eu resolvi de repente a minha data de saída, não comprei a
passagem antecipada. Mas em um povoadinho tão pequeno e com muitas saídas de
ônibus para a capital eu não tive a maldade de pensar que a passagem podia
acabar! Quem me levou até o terminal de ônibus foi um devoto e ele já me
adiantou a possibilidade de não ter passagem. Quando chegamos ele tratou de me
ajudar tentando buscar as informações para mim. Não tinha mesmo passagem e ele
conversou com o motorista do ônibus para ver se ele não deixava eu ir em pé, já
que era apenas uma hora e meia de percurso. Ele disse que alguns motoristas
deixam, mas esse não permitiu. Assim fui para a segunda alternativa que ele me
ensinou.
O devoto ficou comigo até vir um
ônibus de circulação comum e avisou para o motorista que eu queria descer na
entrada de um próximo povoado. Lá eu desci e caminhei uns vinte minutos até
chegar à estrada onde passavam muitos ônibus de viagem para a capital com
lugares vazios. O devoto tinha dito que havia sempre muitas pessoas no ponto de
ônibus, mas enquanto eu cruzava a passarela vi que só tinha uma pessoa. E essa
pessoa fez o favor de pegar uma carona faltando um minuto para eu chegar. Ai que
medo que eu fiquei de estar ali na estrada. Mas o medo vinha junto com a
coragem e ali eu fiquei. Só que eu não tinha idéia do que fazer com o ônibus,
se eu tinha que dar sinal, para qual que era. Mas eu fiquei apenas uns cinco
minutos e chegou um garoto com cara de quem estava indo trabalhar. Eu tirei as
dúvidas com ele e logo o ponto realmente encheu de gente, todo mundo rumo à
capital e lá fui eu!